sábado, 15 de novembro de 2014

MISERICORDIOSÍSSIMA NOSSA SENHORA DESATADORA DOS NÓS, Ó MARIA SANTÍSSIMA






Autos no.







JOSÉ DIRCEU DE OLIVEIRA E SILVA, já qualificado nos autos do processo-vida em referência, vem, inconformado com a v. decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil, que o condenou nas iras do artigo 666/2, do Código Penal Brasileiro, por intermédio de seu intercessor na terra, ajoelhado sobre um genuflexório voltado ao altar da nave central da Basílica de São Pedro de Roma, in fine assinado, exorar a presente


ORAÇÃO COM PEDIDO LIMINAR DE CONCESSÃO DE GRAÇA


tendo por base o Verbo Divino, e os fatos e fundamentos naturais por que passa a perorar.

Não havendo a quem mais apelar, recorre a esta Oração, meio adequado para rogar pela extinção dos nós que embargam sua liberdade material e suplicar por sua salvação terrena.

Cabível ainda clamar pela tempestividade desta Oração, em vista do princípio da atemporalidade divina, insculpido sobre o Céu e a Terra, criados por Nosso Pai Todo Poderoso.


1. DOS FATOS

O ADORADOR foi julgado pela Ação Penal 470 tramitada perante o Supremo Tribunal Federal do Brasil, sendo incurso nas iras do artigo 666/2, do verecundíssimo Código Penal Brasileiro, e condenado a 07 anos e 11 meses de detenção em regime inicial fechado.

Opostos Embargos Infringentes perante o excelso Tribunal (sic), exceção das exceções convenientississimamente criada, a condenação foi confirmada em decisão unânime do Pleno do semidivino, havendo, por fim, transitado em julgado.

Ocorre, Misericordiosíssima, que a v. decisão dos doutos ministros do colendo Tribunal não merece prosperar, por entender o ADORADOR que é um mártir do povo brasileiro, acusado e condenado injustamente perante a justiça dos homens pela vilipendiosíssima oposição.


2. DOS FUNDAMENTOS NATURAIS

Em sede de preliminar, cumpre explicar a Nossa Senhora a nulidade em que incorreu a Ação que condenou o ADORADOR. Para tanto, deveis lembrar que não coube a Jesus, vosso filho, julgar os homens. Neste sentido, foi o que João (12:47) escutou de Jesus, in verbis, “e alguém ouve as minhas palavras e não lhes obedece, eu não o julgo. Pois não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo.” Sabeis que Aquele Único que nos pode julgar em arbítrio perpétuo é Deus, Nosso Senhor Todo Poderoso, no fim dos tempos. Ora, o julgamento perpetrado pelo excelso pretório brasileiro usurpa Dele a função de Juízo Natural, mesmo antes do fim dos tempos. Incorreu-se, dessarte, em grave nulidade que envenena a toda a Ação Penal 470.

Por outro lado, sabeis, ó Maria Virginíssima, que é notório e de amplo conhecimento que a fé e a crença em Nosso Senhor Deus Todo Poderoso dá causa à salvação. No caso concreto, o ADORADOR admite aqui, por meio de seu intercessor na terra, ajoelhado diante de Vossa Imaculadíssima Imagem, haver pecado:

“Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.” (DIRCEU, José. 2014)

Prova robusta, conforme podereis, Grande Desatadora, constatar da consulta à Oniscientíssima Sabedoria de Nosso Senhor.

Deus, Nosso Senhor concede o indulto da salvação eterna sem condições que não a graça. Ponde, neste sentido, vossa graciosa atenção ao que consta da Palavra em Efésios (2:8-9), ipsis litteris,  “pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie.” O ADORADOR, em epifania pós-condenação pelos homens, arrependeu-se e, de coração aberto a Nosso Senhor, encontra-se no estado da graça. Ademais, se Deus não valora positivamente as obras, tampouco há de valorar negativamente a falta de cumprimento de pena privativa de liberdade perante os homens.

Deveis, Grande Advogada, estender vossa pia mão para conhecerdes do entendimento majoritário da Divina Providência. Vede, pois, a Providência dada por Nosso Senhor no caso do acusado e condenado Henrique Pizzolato. Naturalizado italiano, o então réu conseguiu fugir, com o passaporte do irmão, para a Itália, país que não mantém tratado de extradição com o Brasil. Conquanto acidentalmente preso naquele país, o já condenado no Brasil encontra-se em liberdade. Vede, pois, ó Maria Desatadora dos Nós, a salvação inconfessa providenciada por Nosso Senhor a este condenado e a tantos outros, supedâneo divino-providencial para o que clama o ADORADOR.

Por último e não menos importante – a despeito da incorreção topográfica oracional –, há o perigo da demora. O ADORADOR, como sabeis, Misericordiosa, encontra-se preso em regime semiaberto. Obra em uma Biblioteca, estuda a Palavra, mas suas condições materiais terrenas não o permitem mais tanto ter de fazer para remir apenas 01 dia de condenação por, vede bem, 03 dias de “tripalium”, labor imposto pelos anjos caducos que dominam a Terra. Ainda em conformidade com todo o retro orado, vedes a presença do fumus bona causae. Cabível, portanto, ó Maria, a graça em caráter liminar.

Misericordiosíssima Nossa Senhora, vedes, pois, que merece desate imediato – e, em seguida, perpétuo – o nó que suspende a liberdade ambulatória própria terrena do ADORADOR.

 TENDE PIEDADE!


3. DAS GRAÇAS

Audito todo o exorado, roga-se, ó Maria,

a) que a presente Oração seja ouvida e seja concedida a graça em caráter liminar em intenção ao desatamento dos nós que mantêm a prisão do ADORADOR;

b) que a presente Oração seja atendida e desatados os nós em caráter perpétuo, sendo concedida o indulto de salvação terrena per omnia seculae seculorum;

c) caso Nossa Senhora Misericordiosíssima assim não queirais, ou em não podendo desatar os nós, roga-se em novena por Vossa intercessão junto a Nosso Senhor Jesus Cristo, para que Ele converta a presente Oração em Súplica ao Pai Eterno, em vista do princípio da intencionalidade dos sentidos da Palavra, elevando-a ao onisciente conhecimento de Deus Nosso Senhor Todo Poderoso, Criador do Céu e da Terra.



Preces em que, genuflexado,
roga por misericordiosa amenização.


Roma, aos 15 dias do mês de novembro do 2014o Ano da Graça de Nosso Jesus Christo.



INTERCESSOR NA TERRA

OAB/DF XXXXX-X

sábado, 12 de abril de 2014

O MANÍACO DO CAFÉ

O MANÍACO DO CAFÉ
Então Joana tomou novamente a taça com a mão esquerda, bebeu do vinho e pronunciou aos outros em tom solene e definitivo:
_Não, café eu não bebo mais.
_Mas por que, criatura? - disparou Camilla, abrindo as mãos espalmadas pelo ar, no que Marcelo tentou adiantar:
_Gastrite?
_Só me não vá dizer que é novamente à la cause des garçons ! – interveio Mariana, enquanto punha novamente a xícara no pires e tomava com a mesma mão o pequeno copo com São Lourenço.
Decursos alguns segundos através do silêncio em que se ouviam somente a algazarra e o tinir de talheres e porcelanas, Joana acrescentou:
_Refoi, Mariana – disse neologizando. E continuou: Conheci um moço. A bem da verdade, um maníaco, um serial killer, um ladrão de arts et métiers...
_Serial killer? - perguntou Marcelo, metendo o cotovelo sobre a mesa e puxando os pelos da barba do queixo.
_Ao que parece, você escapou com vida, hã? - avançou Mariana, rindo.
_Ao que parece, Mariana, ao que parece… Me roubaram a alma, me extirparam o coração e até mesmo algumas palavras, gestos e hábitos me suprimiram. – ressoou Joana.
_Nossa, que poético! – disse Camilla.
_Um serial killer de corações, um maníaco por café, eis o algoz de meus mais puros sentimentos. – disse Joana insuflando lentamente os pulmões, enquanto apontava as sobrancelhas ao meio da testa, fazendo-se novamente o silêncio naquela mesa.
_Mas ande com isso, Joana, explique como foi isso! Tão rápido assim? - continuou Mariana.
Marcelo, então, pensou consigo mesmo sobre a preguiçosa sessão de lamúrias e choradeiras que aí se instalaria, com a condescendência e sob os aplausos das amigas do sexo feminino: o teatro tétrico do sofrimento passional comezinho humano. E Joana se precipitou:
_O conheci aqui, neste mesmo Conservatório, faz um mês. Naquela sexta-feira em que nenhum de vocês me pôde dar atenção, vim ter nessa mesa com a solidão da alma. E na mesa à minha frente lá estava ele, aparentemente sozinho. Sua figura me chamou a atenção de imediato: jovem, moreno, occhiale di Giorgio em acetato preto... No semblante, a bondade de uma irmã de caridade vicentina e no interior, a paz de um monge ortodoxo grego do mosteiro Dionísio do Monte Atos. A leveza dos movimentos me lembrava de Nureyev. Mas o sorriso contava outras coisas que me mexiam mais...
_Jesus! Acho que te colocaram mais um coração - interrompeu Marcelo, de imediato censurado pelos olhares reprovadores de Camilla e Mariana.
_Continua, Joana! Você foi até a mesa dele?
_Eu, Mariana? Imagina! Meus olhos se esgueiravam por toda parte do salão, a vergonha me consumia, o corpo parecia que iria derreter e escorrer por dentre as moléculas do ar. E eu não sabia se ele estava desacompanhado. Fiquei tão incomodada quando percebi que me olhava que quase levantei e corri. Fugia do encontro com seu olhar como a presa que, de costas, sente não poder mais retroceder.
_Joana, você é tão incompreensível. O tipo não te interessava? - perguntou Marcelo em serena ironia.
_O ser humano, Marcelo, o ser humano o é. Eu, não menos. Você sabe, eu tenho a alma de uma virgem puritana...
_Ô, se sabemos! - acrescentou Marcelo nuançando de azul sua ironia, enquanto elevava os olhos ao teto.
Mais uma vez, olhares reprovadores chegaram a Marcelo à velocidade da luz. Então Joana bebeu mais um pouco do vinho e retomou:
_Ele se levantou e veio em direção à minha mesa. À medida que se aproximava, meu coração disparava e meu ventre era tomado por borboletas fugidias de um arbusto balançado pelo ataque de um predador inexorável. Parou diante de mim e eu tomei não menos do que cinco ou seis segundos para encará-lo, temendo que ele não estivesse ali para me cumprimentar. Mas estava ali a me olhar de cima e logo a apresentação se verbificou na singeleza de um "oi".
_Joana… - se enterneceu Camilla, suspirando.
_Foi exatamente isso que eu disse, Camilla. “Joana…”
_Como assim? - interrompeu Marcelo já meio irritado com o andar lento da conversa.
_Não sei, meu caro. As outras palavras me fugiram e só me restou esta representação de mim, meu nome. Então ele riu e disse: "Prazer, Joana, eu sou Amílcar". Lhe pedi que se sentasse ao que me atendeu prontamente. Trocamos alguns sorrisos e Amílcar fez os primeiros e certeiros disparos de metralhadora contra meu coração. Perguntou se poderia me pagar um café.
_Ao menos ele não te ofereceu um scotch - balbuciou baixinho Marcelo, com medo das flechas húngaras emanadas através dos olhos de Mariana e Camilla.
_Não, foi mesmo um café! Mal sabia eu… - respondeu Joana, transpondo-se do ríspido ao tom de autocomiseração.
_O que você não sabia, Joana?
_Não sabia que Amílcar era um psicopata, um maníaco, um assassino, um destruidor de lares solitários, frio, cínico, um torturador omissivo…
_A tortura pela omissão! - disparou Marcelo, interessando-se pela conversa que passava da metáfora poética à crueza da realidade.
_Isso, Marcelo! Ele me torturava pelo que não me dizia, pelo que não me dava, pelo que deveria ter sido e não foi…
Marcelo então sorriu a boca cínica e o olhar nu da compreensão.
_Joana, mas e então? O que foi? – disse balançando seu café a ponto de fazê-lo entornar sobre o pires.
_Um espresso ristretto, grão etíope da plantação de Oromia, corpo forte, aroma forte, torrefação francesa.
_Que delícia! - empolgou-se Camilla.
_Você sabe, eu não gosto mais de café, Camilla.
_Joana, não diga isso! Vai passar, você vai ver. - emendou Mariana.
_Não vai, minha amiga, agora do café só sinto a amargura da vida, a inocência perdida.
Novamente, Marcelo meteu no rosto a máscara da compreensão.
_Então Amílcar me perguntou o que eu havia achado do café e, para não soar pernóstica, eu lhe respondi que estava tão quente que me havia queimado a língua.
_Vejam só... Joana, só mesmo você! - exclamou Mariana.
_Amílcar riu cinicamente como se me contemplasse graciosamente a superficialidade essencial de uma tola. Mas eu nem percebi. Já estava empedrada pela visão da Medusa. E toda vez que não prestamos atenção, um mal nasce diante de nós e nos cativa a razão. Se ao menos eu houvesse notado a natureza do espírito de Amílcar naquele instante, minha vida estaria agora salva. Malditas emoções!...
_Joana, a sua interpretação do fato é tão grandiloquente quanto uma interpretação de Autran. Eu diria talvez mais: você é uma adepta al Velame. - disse Marcelo cínico.
Mas Joana pouco se importava com as ironias do amigo. Talvez mesmo nem lhes prestasse atenção ou não as pudesse conhecer. E retomou:
_"Qualis nox fuit illa, di deaeque" - sorriu Joana em mirabilis uolupia. A irmã de caridade vicentina retirou a máscara e encarnou Freyja chez lui. Jamais me esquecerei de certo olhar que vi, que me punha do avesso e me desconstruía em quatro passos. Um sexo gauche… enredado com gestos pesados e calões inapropriados para o horário. Violência física e psicológica simbolizando em um ato a morte e o renascimento. E de fato, eu renasci.
_Não sabia que você era dessas, Joana.
_Não sou, Camilla! Subjazem metáforas…
_E em seguida? - perguntou Mariana.
_Em seguida Amílcar me aprisionou o coração e de posse dele me mostrou a outra face: o torturador omissivo. Eu só tinha amores e medos; ele, o domínio da situação...
_Que tenso!
_Continua, Joana! - mandou Marcelo, como quem espreita o gozo.
_Pois bem, Amílcar invadiu minha realidade e, como aqueles que só encontram a paz na guerra, passou a fazê-la contra mim, a ovelha cega de amores, objeto por excelência dos sociopatas. Não tirou de mim qualquer coisa de material, não. Não chegaria a tanto. Começou suas malvadezas aos poucos. Um dia pela manhã, me privou de um sorriso. Noutro, me levou carinhos. Até mesmo de sua história ele me cerceou. E quando percebia que o passarinho engaiolado pereceria, me deixava lá algumas migalhas para matar a fome.
Marcelo, simplesmente retesado com o refinamento técnico do companheiro.
_Você acha que ele não gostava de você?
_Francamente, Camilla, um sujeito desses há de poder gostar de alguém? Esses pequenos buracos negros narcisistas sugam tudo quanto há ao seu redor. Não há sentimentos que deles consigam se desviar. E o pior: nada sai de lá.
_Isso é forte. - ponderou Mariana, ao que Joana continuou:
_Amílcar me privava do que havia em mim de mais genuíno e aos poucos secava covardemente a terra em que se fincavam as minhas raízes. Me roubou as palavras, os nomes de meus filhos, a atenção e a inocência. Até o gosto pelo café Amílcar levou de mim. Era um cafecólatra. Sorvia todos. Não se importava com origem, tanto menos com aroma, corpo, cafeína, torragem. Não poupava nenhum de suas garras. Tomava até dos malfeitos.
_E como você acabou com ele?
_Eu não acabei, Mariana. Foi ele quem acabou comigo. Percebendo que não dispunha mais de vida a me roubar, deu seu último passo em direção ao ato final desta violenta tragédia. Vejam, eis aí a mensagem que me enviou.
_Não acredito!
_Canalha!
_Rã!
_Sim, meus amigos, não posso mais me demorar na profissão. Agora sabem por que deixo de ser barista.


sábado, 22 de março de 2014

POR QUE PARECEMOS BRANCOS?

Tava aqui conversando com um amigo e falando sobre um assunto de que pouca gente se lembra quando pensa na própria origem. E isso ocorre porque, apesar de sempre tão alardeada miscigenação do brasileiro, a gente imagina que é branco porque não exatamente fez parte dessa miscigenação. só que fez. Senão vejamos.
Durante os quase três primeiros séculos da empresa colonial portuguesa na América, raríssimas eram as mulheres que aportavam aqui. Por um motivo muito óbvio: ficavam em Portugal cuidando da família; não tinham a sanha conquistadora ibérico; não estavam muito afeitas à ideia de se jogar ao mar para expedições de meses; muito menos a ir morar numa colônia do outro lado do mundo de que o objetivo era arrancar o máximo e voltar à Europa; e na raiz, o português era o pescador, era ele quem se lançava ao mar, e a mulher ficava ao cais aflita pela sua volta (olha as origens da nossa pieguice aí). Vale lembrar ainda que mesmo para o português, vir para a colônia era empreendimento temporário. Se não era um criminoso, um sesmeeiro, um degredado, um cristão novo fugindo da Santa Inquisição, por que alguém quereria fixar moradia num lugar quente, perigoso, longe da família? É a mesma coisa que pensar hoje em ir lançar as bases da colonização de Marte, né?
Pois bem, esses empreendimentos individuais de exploração eram demorados. Se hoje em dia um projeto se matura a médio prazo, no atraso tecnológico do século XVI... subir as serras, descampar matas, civilizar nativos, achar alguma coisa de valor econômico. Tanto é que o que se quis de primeiro foi o mais fácil: madeiras, especiarias, metais etc. Nada de ficar plantando e esperando sentado pra levar pra Europa.
Uns quarenta anos após a divisão da América pela bula papal (acho que o papa era Alexandre "N"), o Reino percebeu que pelas investidas francesas perderia a terra se não a colonizasse com gente. E como fazer isso sendo que Portugal tinha uma população que não passava naquela época de um milhão de habitantes? Como colonizar meio mundo com esse tantico de gente?
E foi aí que a necessidade individual se juntou com o interesse coletivo e com a vontade de comer (não literalmente). Como eu disse, as mulheres não saíam do reino. E foi justamente nesse ponto que o português foi dos povos mais plásticos de que se tem notícia na História. Enquanto o espanhol trazia a esposa, os filhos, a organização burocrática de Castela e Leão e a igreja, o português vinha sozinho, pra onde não havia pecado - para abaixo do Equador.
Como deveria ficar aqui por mais tempo, sem esposa, poucos padres e o Rei ainda queria que a colônia procriasse, a sua necessidade individual fez com que ele "fornicasse" com as índias e que com elas, obviamente, tivesse filhos. Em termos de duas ou três gerações, o que equivale ao período do século XVI, já havia nos principais centros de colonização um pool de mestiços e, principalmente de mulheres mestiças, à disposição dos homens portugueses que continuavam vindo da Europa.
E é aí que começa o nosso branqueamento. Nesse pool de filhos de índias e portugueses do primeiro século, havia aqueles cujos traços saíam mais ao pai e aqueles que se pareciam mais com a mãe. O filho homem mais forte e destemido, mestiço, em geral virava o assumia o empreendimento local do pai e se casava com uma mestiça de traços mais "europeus"; os outros filhos desbravam o interior; as filhas mestiças de traços mais "europeus" eram as preferidas para o casamento com o português que vinha em fluxo constante da Europa, obviamente porque já possuíam "alma", eram minimamente mais educadas e lembravam mais o padrão de beleza deixado na terrinha. As filhas mestiças de traços mais indígenas eram as preteridas. Ou casavam-se com mais outros índios, ou homens mestiços mais pobres e iam formando uma classe mais escura e mais ao meio da elite.
Ressalto, essa foi a mistura que deu origem à classe média antiga e tradicional brasileira. São os quatrocentões paulistas, os sertanejos que subiram o São FRancisco em direção a Minas e colonizaram grande parte do estado, e mesmo no litoral do nordeste, onde a elite primordial era mais portuguesa e diferenciada do que no Sudeste. Aliás, isso é visível até hoje. A elite nordestina se acha mais antiga, casta e europeia; a carioca tem certeza que é uma extensão da Corte de Lisboa e a paulista se orgulha de ter desbravado o mato.
Mas era aqui que eu queria chegar: nesses primeiros séculos, mulher portuguesa só vinha para o Brasil se fosse órfã, não arranjasse marido em Portugal ou se tivesse algum problema no Reino (prostituta, cristã-nova, bruxa, perseguida etc.). A filha mais branca do português e da índia era a preferida e daí em diante. Por isso a classe média em geral tem a pele mais clara. Porque foi "branqueada" seletivamente ao longo do período colonial.
E se você acha que isso tá longe... não, não! Conhece gente que teve a bisavó índia pegada no laço pra casar com um desses sertanistas que povoaram o oeste de Minas Gerais no século XIX.
p.s.: não fiz revisão do texto, como palavras etc. e tou com pressa rsrs
p.s. 2: bom dia!

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Uma pequena reflexão para o ano novo

Esta manhã me sentei à mesa para o café com um questionamento que me venho fazendo desde que me entendo por gente - ou quiçá mesmo desde antes de nascer.

Por que o Brasil - e a América Latina de forma geral - ainda não deu certo? Por que - apesar de termos acesso a tecnologias e mesmo cultura, organização e planejamento externos - ainda não conseguimos suplantar alguns dos mais daninhos males de nossa sociedade?

E o que primeiro me saltou no vazio das ideias para responder a tais perguntas foi justamente o que lhes faltava: temos acesso a tecnologias, cultura, organização, planejamento, mas não temos um espírito.

(Quero, antes de continuar, fazer um pequeno porém: digo espírito não num sentido religioso propriamente dito. Falo do espírito num sentido clássico, aristotélico, portanto, anterior ao sentido "distorcido" que ganhou do cristianismo e mais anterior ainda ao sentido vazio que ganhou do cartesianismo. Talvez mais adequado seria dizer psiquê. De toda forma, deixo também aos crentes o sentido religioso, se lhes aprouver.)

Mas como não temos um espírito? Temos sim, por óbvio! Mas minha pergunta é: demos certo como nação? Temos um espírito de nação? Você se reconhece no seu concidadão? Sim? Não? Por quê?

Pus-me, assim, a aventar hipóteses que simplificassem o que leio no nosso inconsciente social. Vi as folhagens que estão à mostra para quem passa; verifiquei seus galhos; dei-me com seu tronco; e vi em que terras se afincam algumas de suas raízes. Serviram-me assim aquelas à reflexão. Talvez mais: serviram-me à inflexão.

Temos uma terra perfeita, matrizes étnicas diversas e maravilhosas, um caldeirão de culturas riquíssimas e que nos poderia aproveitar a simplicidade indígena, a alegria africana, a tecnologia do europeu... Mas... e como nascemos? Como nasceram as primeiras sementes humanas semeadas nesta terra? 

Parece-me que ainda carregamos um desprezo branco e masculino pelo Brasil, como se algum dia fôssemos alguns de nós voltar a Portugal contar os feitos em terras do além-mar, estendendo ao alto uma cruz materna e arcaica; um ressentimento amedrontado, amarelo e feminino, que guarda no peito ora um falso orgulho ora uma vontade de se refugiar em suas próprias raízes ao abrigo da civilização; uma desconfiança e uma autodesconfiança negra que creu na liberdade pela miscigenação e mesmo pela autonegação.

O que passava pela cabeça dos primeiros homens que zarparam de Portugal para se aventurar pelo mundo? Como cresceu o filho da primeira índia violada após a missa rezada aos pés do Monte Pascual? Como se sentiu o primeiro negro que foi amarrado por outro negro da tribo inimiga e entregue à escravidão em terras que lhe eram estranhas e infamiliares? Como se sentiu a primeira negra que pariu um fruto de seu senhor? Seria seu filho um branco livre ou um negro escravo?

São perguntas que me trazem respostas e que me trazem problemas. Mas que me jogam também a luz à consciência. E se nem todos ainda sofrem com este espírito  - seja porque de famílias imigrantes ou de famílias que já transcenderam essa raiz e cujas sementes já brotaram em solos mais distantes -, muitos ainda parecem padecer de uma sanha oportunista, aventureira; ou do medo da violação física; ou da autoderrogação e da desconfiança recíproca.

O que me importa assim enxergar tais problemas? Muito. Como eu disse, não para reflexão, mas para inflexão. Para isolá-los - quando mesmo na minha própria alma - até que esta velha árvore tombe seca e se fossilize na história. Importa-me não semeá-los mais sem os perceber.

E é, portanto, o que desejo para nós a partir de 2014: que saibamos perceber cada vez mais o que perpetuamos de ruim; que tenhamos a coragem para mudá-lo em nós e para ajudar ao outro; que sejamos abençoados com sabedoria para chegar a um novo patamar de civilização.

Feliz 2014!

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Breves considerações acerca da origem etimológica e histórica da palavra “menino”

Impossível dizer ao certo de onde me vem a curiosidade a respeito de determinadas palavras,  mas num átimo me passou pela cabeça que “menino” não soa tão latim e que deveria ter  outra origem mais ibérica, mais de base, mais próxima às primeiras palavras que o homem  balbuciou. Pois bem, minha bisbilhotice etimológica deveio por deveras aguçada.

Recorri primeiramente, como sempre faço, aos dicionários, na espera por uma resposta pronta  e certeira acerca da origem do “menino”. Eis as respostas:

1) voc. de criação expressiva; s.v. meñique 'o menor dedo da mão', Corominas  rejeita a hipótese de a palavra menino, em port., ser um emprt. do esp.; para  o autor, trata-se de um de tantos termos acariciativos que as mães inventam  para os seus filhos e, nessas condições, explica-se que o voc. seja aparentado  com o fr.ant. mignot (sXIII), mod. mignon, 'gracioso, gentil, bonito', cat. (sXIII)  minyó 'rapaz'; f.hist. sXIII menino, sXIII menỹo, sXIII mininno, 1345 meninho,  sXIV menĩhos, sXV mynyno (Houaiss).

2) [Voc. de or. express.] (Aurélio).

Resultado: a resposta não era tão pronta assim. “Menino” não advém de alguma palavra latina parecida com “meninnus”. Certo me pareceu que tem origem num vocativo de origem/criação expressiva.

Como trouxe Houaiss, rejeita-se a hipótese de ser a palavra um empréstimo do castelhano.  Entretanto, “menino” me lembra bastante de uma outra palavra espanhola: “niño”. Sobre a origem desta, encontrei estas notas, que convém observar.

Pero ocurre que la raíz nin la encontramos también en las familias lingüísticas del catalán, el gallego (menino) y el italiano; por eso los lexicólogos quieren creer en un ninus o ninnus del bajo latín como origen común de esta palabra,  que tardó en pasar de la lengua hablada a la escrita. Pero aun con esto,  queda por explicar la procedencia o las conexiones de ese hipotético ninus  o más probablemente ninnus, porque no hay campo léxico al que asignarlo.  Las formas niño y niña testifican la doble nn (observemos cómo de annus  hemos pasado a año). La única explicación que nos queda es asignarle a esta  palabra un origen infantil imitado por los adultos, que ayer más que hoy se  caracterizó por la tan plásticamente llamada ñoñería. Corominas ha rastreado  la presencia de palabras análogas en otras lenguas: en ruso, njanja es teta y  biberón; en vasco aña es la niñera; en gallego nana o nanai es mamá; en el  alemán del Tirol nene es el abuelo; en servio y en otros idiomas, nana es la  hermana mayor; en húngaro dan ese mismo significado a nene; en turco nené  es la abuela; en búlgaro neni es el viejo. (http://www.elalmanaque.com/lexico/nino.htm)

Semelhantes a “niño”, temos no português e em outras línguas latinas “neném”, “nanar”,  “ninna”, “menino”, dentre outras. E parece bem provável que esse “n-n” tenha surgido de uma  imitação do choro dos bebês, a onomatopeia tão comum às palavras mais familiares e de base  de todas as línguas, provável origem da fala, visto a nossa tendência de nomear algo com a  repetição do barulho que faz, processo este inerente ao aprendizado da fala.

Assim, de um “nhém-nhém” de um bebê, nomeamo-lo “nenê”, “nene”, “nino”, “ninho”, pela  palatização do “n” tão comum ao português. Mas por que “me-nino”?

Começo aqui meu devaneio. Uma mãe com sua criança no colo não precisava dizer a ninguém que aquele “nhém-nhém” era seu. Mas à medida que ele crescia e corria ao redor dos pais, parece-me aceitável que os pais, ao apresentarem a criança a terceiros, referisse-se a eles  com um pronome possesivo: aquele é meu “ninho” – apontando-o aos outros. No galaico-português, o pronome “meu” era muito comumente abreviado por “mo”, “ma”, “mia”, “me”,  como efetivamente ocorreu em outras línguas do romance. Por conseguinte, o “meu” na  forma de “me” se justapõe ao “nino” e forma aquele “menino” por quem procura minha  curiosidade. Por que significa hoje “criança” e não “meu filho/nenê”? Nem conviria chamar  uma criança eternamente de neném, correto? Além do mais, as palavras, assim como os filhos,  se soltam de suas origens significativas, formando à língua outros sentidos para bem além dos  originais.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Mas por quê?

O Português é uma língua com ojeriza a consoantes - principalmente ao "n", "d", "lh", "x" e "s", detestando também os encontros "pl", "fl" e "cl". Também não é lá muito chegado em vogais longas e, sempre que pode, some com a vogal "e" átona.

Mas se tem uma coisa que o Português realmente de-tes-ta são as palavras proparoxítonas e oxítonas, estas sendo um pouco mais bem aceitas pelo Português Brasileiro, herdeiro da língua geral de base tupi falada nos primórdios da Terra Brasilis.

Não sei bem explicar os motivos de tal predileção, mas é fato que muitas palavras originalmente proparoxítonas provindas do latim e do grego, quando por via popular, tenderam à "paroxitonidade". Para ilustrar, algumas palavras proparoxítonas e seus correspondentes atuais:

Parabola -> palavra
Auricula -> orelha
Dominus -> dono
Domenicus -> domingo
Acidus -> azedo

Outras eliminaram mesmo hiatos (som de mais de uma vogal em sílabas vizinhas) para se tornarem paroxítonas:

Substantia -> sustança
Filius -> filho
Gratia -> graça
E pense bem: nós acentuamos, na maioria das vezes, somente as palavras proparoxítonas e oxítonas, exceção feita no caso das vogais tônicas "i" e "u", quando na primeira sílaba, e no de outras átonas que, por convenção baseada em sua origem etimológica, são seguidas por algumas consoantes, que no latim eram frequentemente seguidas de mais uma vogal. Exemplos dessas consoantes que fazem as exceções são aquelas em cuja declinação devemos acrescentar uma vogal. Assim:

L: plural -> pluralis -> plurais
Z: juiz -> judici -> juizes
N: abdominis -> abdómen
R: marcador -> marcadores
Não sei se estou sendo claro, mas são consoantes que no decurso de suas transformações perderam vogais que tornariam as palavras em paroxítonas.

No caso do "i" e do "u", poderíamos dizer que, como são também semivogais, faz todo sentido que sejam sempre tônicas, visto que na primeira sílaba quase que gritariam por uma vogal que as completasse.

Posto tudo isso, acho que não resta dúvida: o Português é naturalmente uma língua paroxítona e, portanto, até mesmo com a finalidade de simplificar a acentuação, somente as exceções deveriam ser acentuadas.

Eis que sou tomado de estupenda surpresa quando descubro que a palavra "secretária" não é proparoxítona. Não, meus diletos amigos! A palavra separa-se assim: se-cre-tá-ria. Uma paroxítona terminada no ditongo "ia"... Falar em ditongo crescente já é por si só um absurdo, quando então se fala em ditongo crescente formado com uma semivogal, a coisa beira a insanidade!

Pois bem, duvidando dessa separação silábica absurda e desse ditongo incrível, fui procurar saber no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. E empalideci quando me deparei com a alínea "c" do parágrafo 2o. da Base VII, que transcrevo:

"Além dos ditongos orais propriamente ditos, os quais são todos decrescentes, admite-se, como é sabido, a existência de ditongos crescentes. Podem considerar-se no número deles as sequências vocálicas pós-tónicas/pós-tônicas, tais as que se representam graficamente por ea, eo, ia, ie, io, oa, ua, ue, uo: áurea, áureo, calúnia, espécie, exímio, mágoa, míngua, ténue/tênue, tríduo."

Mas por que tamanha complicação? Não seria mais simples e lógico dizer que "secretária" se separa "se-cre-tá-ri-a" e que, como proparoxítona, acentua-se? Da mesma forma, "secretaria" (do verbo secretariar) não se acentuaria, posto que é uma paroxítona. Nessa linha de raciocínio, até entendemos por que trocar "fi-li-us" por "fi-lho". Se o som de "i" ou "u" anteposto permanece junto a uma vogal, esse som não é de uma vogal, mas sim uma consoante! Se, nesse caso, "ia" formasse uma unidade sonora, a palavra deveria se separar como "se-cre-tár-ia", já que consoantes que não formam um som único são separadas.

Fica, portanto, registrado meu protesto contra as arbitrariedades (ar-bi-tra-ri-e-da-des) que se cometem contra o Português.

terça-feira, 16 de outubro de 2012


Então abri novamente os olhos e fitei o céu por entre os galhos secos da árvore sob a qual se encontrava o banco em que eu me assentara para descansar um pouco da longa caminhada. Distraído, perdia-me em pensamentos e lembranças que se sucediam uns enganchando em outros e que, apesar da forte atenção interior que me tornava distante do local em que me encontrava espacialmente, deliam-se tão logo encontravam a engrenagem que as levaria ao encadeamento consecutivo. Num sobressalto, ouvi a agitação de folhas secas que se arrastavam contra o chão de argila britado enquanto eram levadas pelo vento frio de fins de março. Calculei que o vento soprava de oeste a leste vindo, portanto, do mar ao continente e, ainda, que o sol já fraco sumiria no ocidente setentrional em questão de três horas. Procurei as folhas que varriam o chão daquela pequena praça escondida ao lado dos canteiros centrais da avenida e julguei que seriam as de um plátano, conforme me permitia deduzir o modesto conhecimento da silvicultura. Busquei-o derredor e recobraram-me à memória os galhos que há pouco via secos misturados ao céu, dando-me conta de que estava justamente na fronde da árvore que eu procurava. Ri-me e pensei novamente na fome sôfrega que o fim de tarde vindouro traria. Tirei de um dos bolsos, espichando-me sobre o banco e repoltreando-me em seguida, uma carteira de Kent em que não se encontravam mais do que uns quatro cigarros. Volvi o fundo da pochette pendurada transversalmente pelo meu colo a buscar por um isqueiro que há pouco eu havia comprado de um ambulante próximo a uma banca de flores. Achando-o, acendi o cigarro que me conduziria novamente à promenade. Reconhecendo o ânimo do fumante, os primeiros tragos me puseram a questão que restava sempre sobre permanecer e aproveitar aquela falsa e lânguida sensação de relaxamento que impedia qualquer tônus muscular ou pôr-me de pé e tratar logo da minha mais íntima e ronronante necessidade fisiológica: a privação alimentar... Atravessei a avenida observando de longe os carros de um lado e de outro e, andando mais um pouco ao largo do passeio, deparei-me com um café um tanto quanto navy, de toldo azul e branco, em cuja porta havia um garçom pouco sisudo que parecia entediado pela falta da clientela, o que me remetia novamente ao fim da tarde. Hesitei por alguns instantes até que o atendente me cumprimentou e, sentindo-me compelido pela educação inabitual, tomei um assento no terraço da calçada. Revisei impaciente o menu e, descartando o 3-course meal, optei pelo prato do dia, na ocasião, um magret de pato com molho de laranja, purê de batatas e legumes grelhados. Lembrei-me, ao provar o pato, de que após a crise alguns bistrôs e cafés – e mesmo restaurantes em happy hour – vinham substituindo seus chefs e auxiliares por comida pronta que vinha resfriada de cozinhas industriais durante a madrugada. Meu pato morreu em vão, pensei; a carne estava dura e o molho de laranja, mais doce do que o palatável. Bebi um longo gole de Affligem e, saboreando aquela encorpada cerveja belga brassée en Opwijk, esqueci-me da morte inútil do anatídeo. Após finalizar o espresso e receber a conta, deixei resvalar do porta-níqueis algumas moedas adicionais – pelo bom humor do garçom – e apressadamente ganhei de novo a rua, procurando o caminho da Kléber para chegar enfim ao meu destino.