O MANÍACO DO CAFÉ
Então Joana tomou novamente a taça com a
mão esquerda, bebeu do vinho e pronunciou aos outros em tom solene e
definitivo:
_Não, café eu não bebo mais.
_Mas por que, criatura? - disparou Camilla,
abrindo as mãos espalmadas pelo ar, no que Marcelo tentou adiantar:
_Gastrite?
_Só me não vá dizer que é novamente à la cause des garçons ! – interveio
Mariana, enquanto punha novamente a xícara no pires e tomava com a mesma mão o
pequeno copo com São Lourenço.
Decursos alguns segundos através do silêncio
em que se ouviam somente a algazarra e o tinir de talheres e porcelanas, Joana
acrescentou:
_Refoi, Mariana – disse neologizando. E
continuou: Conheci um moço. A bem da verdade, um maníaco, um serial killer, um ladrão de arts et métiers...
_Serial
killer? - perguntou Marcelo, metendo o cotovelo sobre a mesa e puxando os
pelos da barba do queixo.
_Ao que parece, você escapou com vida, hã?
- avançou Mariana, rindo.
_Ao que parece, Mariana, ao que parece… Me
roubaram a alma, me extirparam o coração e até mesmo algumas palavras, gestos e
hábitos me suprimiram. – ressoou Joana.
_Nossa, que poético! – disse Camilla.
_Um serial
killer de corações, um maníaco por café, eis o algoz de meus mais puros
sentimentos. – disse Joana insuflando lentamente os pulmões, enquanto apontava
as sobrancelhas ao meio da testa, fazendo-se novamente o silêncio naquela mesa.
_Mas ande com isso, Joana, explique como
foi isso! Tão rápido assim? - continuou Mariana.
Marcelo, então, pensou consigo mesmo sobre
a preguiçosa sessão de lamúrias e choradeiras que aí se instalaria, com a
condescendência e sob os aplausos das amigas do sexo feminino: o teatro tétrico
do sofrimento passional comezinho humano. E Joana se precipitou:
_O conheci aqui, neste mesmo Conservatório,
faz um mês. Naquela sexta-feira em que nenhum de vocês me pôde dar atenção, vim
ter nessa mesa com a solidão da alma. E na mesa à minha frente lá estava ele,
aparentemente sozinho. Sua figura me chamou a atenção de imediato: jovem,
moreno, occhiale di Giorgio em
acetato preto... No semblante, a bondade de uma irmã de caridade vicentina e no
interior, a paz de um monge ortodoxo grego do mosteiro Dionísio do Monte Atos.
A leveza dos movimentos me lembrava de Nureyev. Mas o sorriso contava outras
coisas que me mexiam mais...
_Jesus! Acho que te colocaram mais um
coração - interrompeu Marcelo, de imediato censurado pelos olhares reprovadores
de Camilla e Mariana.
_Continua, Joana! Você foi até a mesa dele?
_Eu, Mariana? Imagina! Meus olhos se
esgueiravam por toda parte do salão, a vergonha me consumia, o corpo parecia
que iria derreter e escorrer por dentre as moléculas do ar. E eu não sabia se
ele estava desacompanhado. Fiquei tão incomodada quando percebi que me olhava
que quase levantei e corri. Fugia do encontro com seu olhar como a presa que,
de costas, sente não poder mais retroceder.
_Joana, você é tão incompreensível. O tipo
não te interessava? - perguntou Marcelo em serena ironia.
_O ser humano, Marcelo, o ser humano o é.
Eu, não menos. Você sabe, eu tenho a alma de uma virgem puritana...
_Ô, se sabemos! - acrescentou Marcelo
nuançando de azul sua ironia, enquanto elevava os olhos ao teto.
Mais uma vez, olhares reprovadores chegaram
a Marcelo à velocidade da luz. Então Joana bebeu mais um pouco do vinho e
retomou:
_Ele se levantou e veio em direção à minha
mesa. À medida que se aproximava, meu coração disparava e meu ventre era tomado
por borboletas fugidias de um arbusto balançado pelo ataque de um predador
inexorável. Parou diante de mim e eu tomei não menos do que cinco ou seis
segundos para encará-lo, temendo que ele não estivesse ali para me
cumprimentar. Mas estava ali a me olhar de cima e logo a apresentação se
verbificou na singeleza de um "oi".
_Joana… - se enterneceu Camilla,
suspirando.
_Foi exatamente isso que eu disse, Camilla.
“Joana…”
_Como assim? - interrompeu Marcelo já meio
irritado com o andar lento da conversa.
_Não sei, meu caro. As outras palavras me
fugiram e só me restou esta representação de mim, meu nome. Então ele riu e
disse: "Prazer, Joana, eu sou Amílcar". Lhe pedi que se sentasse ao
que me atendeu prontamente. Trocamos alguns sorrisos e Amílcar fez os primeiros
e certeiros disparos de metralhadora contra meu coração. Perguntou se poderia
me pagar um café.
_Ao menos ele não te ofereceu um scotch -
balbuciou baixinho Marcelo, com medo das flechas húngaras emanadas através dos
olhos de Mariana e Camilla.
_Não, foi mesmo um café! Mal sabia eu… -
respondeu Joana, transpondo-se do ríspido ao tom de autocomiseração.
_O que você não sabia, Joana?
_Não sabia que Amílcar era um psicopata, um
maníaco, um assassino, um destruidor de lares solitários, frio, cínico, um
torturador omissivo…
_A tortura pela omissão! - disparou
Marcelo, interessando-se pela conversa que passava da metáfora poética à crueza
da realidade.
_Isso, Marcelo! Ele me torturava pelo que
não me dizia, pelo que não me dava, pelo que deveria ter sido e não foi…
Marcelo então sorriu a boca cínica e o
olhar nu da compreensão.
_Joana, mas e então? O que foi? – disse
balançando seu café a ponto de fazê-lo entornar sobre o pires.
_Um espresso
ristretto, grão etíope da plantação de Oromia, corpo forte, aroma forte,
torrefação francesa.
_Que delícia! - empolgou-se Camilla.
_Você sabe, eu não gosto mais de café,
Camilla.
_Joana, não diga isso! Vai passar, você vai
ver. - emendou Mariana.
_Não vai, minha amiga, agora do café só
sinto a amargura da vida, a inocência perdida.
Novamente, Marcelo meteu no rosto a máscara
da compreensão.
_Então Amílcar me perguntou o que eu havia
achado do café e, para não soar pernóstica, eu lhe respondi que estava tão
quente que me havia queimado a língua.
_Vejam só... Joana, só mesmo você! - exclamou
Mariana.
_Amílcar riu cinicamente como se me
contemplasse graciosamente a superficialidade essencial de uma tola. Mas eu nem
percebi. Já estava empedrada pela visão da Medusa. E toda vez que não prestamos
atenção, um mal nasce diante de nós e nos cativa a razão. Se ao menos eu
houvesse notado a natureza do espírito de Amílcar naquele instante, minha vida
estaria agora salva. Malditas emoções!...
_Joana, a sua interpretação do fato é tão
grandiloquente quanto uma interpretação de Autran. Eu diria talvez mais: você é
uma adepta al Velame. - disse Marcelo
cínico.
Mas Joana pouco se importava com as ironias
do amigo. Talvez mesmo nem lhes prestasse atenção ou não as pudesse conhecer. E
retomou:
_"Qualis
nox fuit illa, di deaeque" - sorriu Joana em mirabilis uolupia. A irmã de caridade vicentina retirou a máscara e
encarnou Freyja chez lui. Jamais me
esquecerei de certo olhar que vi, que me punha do avesso e me desconstruía em
quatro passos. Um sexo gauche…
enredado com gestos pesados e calões inapropriados para o horário. Violência
física e psicológica simbolizando em um ato a morte e o renascimento. E de
fato, eu renasci.
_Não sabia que você era dessas, Joana.
_Não sou, Camilla! Subjazem metáforas…
_E em seguida? - perguntou Mariana.
_Em seguida Amílcar me aprisionou o coração
e de posse dele me mostrou a outra face: o torturador omissivo. Eu só tinha
amores e medos; ele, o domínio da situação...
_Que tenso!
_Continua, Joana! - mandou Marcelo, como
quem espreita o gozo.
_Pois bem, Amílcar invadiu minha realidade
e, como aqueles que só encontram a paz na guerra, passou a fazê-la contra mim,
a ovelha cega de amores, objeto por excelência dos sociopatas. Não tirou de mim
qualquer coisa de material, não. Não chegaria a tanto. Começou suas malvadezas
aos poucos. Um dia pela manhã, me privou de um sorriso. Noutro, me levou
carinhos. Até mesmo de sua história ele me cerceou. E quando percebia que o
passarinho engaiolado pereceria, me deixava lá algumas migalhas para matar a
fome.
Marcelo, simplesmente retesado com o
refinamento técnico do companheiro.
_Você acha que ele não gostava de você?
_Francamente, Camilla, um sujeito desses há
de poder gostar de alguém? Esses pequenos buracos negros narcisistas sugam tudo
quanto há ao seu redor. Não há sentimentos que deles consigam se desviar. E o
pior: nada sai de lá.
_Isso é forte. - ponderou Mariana, ao que
Joana continuou:
_Amílcar me privava do que havia em mim de
mais genuíno e aos poucos secava covardemente a terra em que se fincavam as
minhas raízes. Me roubou as palavras, os nomes de meus filhos, a atenção e a
inocência. Até o gosto pelo café Amílcar levou de mim. Era um cafecólatra.
Sorvia todos. Não se importava com origem, tanto menos com aroma, corpo,
cafeína, torragem. Não poupava nenhum de suas garras. Tomava até dos malfeitos.
_E como você acabou com ele?
_Eu não acabei, Mariana. Foi ele quem
acabou comigo. Percebendo que não dispunha mais de vida a me roubar, deu seu
último passo em direção ao ato final desta violenta tragédia. Vejam, eis aí a
mensagem que me enviou.
_Não acredito!
_Canalha!
_Rã!
_Sim, meus amigos, não posso mais me
demorar na profissão. Agora sabem por que deixo de ser barista.
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