quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O CALOR E A PREGUIÇA

E nunca foi diferente. Desde a colônia, o açoite flagela o negro e faz da negrinha o passatempo predileto das longas noites de calor do senhor, frutescendo mulatos Brasil afora. O trabalho do negro é contraposto à facilidade com que seu senhor leva a vida na mansidão do calor dos trópicos, contemplando o mar do alto de sua varanda do Leblon. O calor amaciou o português. Amaciou mesmo italianos, germânicos e até os árabes, já acostumados ao calor. E com a fruta nas mãos, a vida foi – e é – fácil no paraíso lendário invadido há 500 anos.

Para quem nunca teve o açoite na mão, a felicidade é a “grande ilusão do carnaval”, transplantado diretamente das irmandades e festas do terreiro do engenho. Ilusão de povo feliz, de “vida de gado”, ora na plantação de cana, ora na plantação de soja. Ilusão de liberto, na cidade, que não vai além das vésperas da derrama. Mulher “de barriga”; plantação de úteros.

E não falta à razão quem diz que o calor dá preguiça de trabalhar. Dá, e nossos 500 anos de história integrada são a prova cabal do modelo que se replica. Antes tínhamos os escravos; hoje temos sistemas altamente eficientes de gestão de massas. Temos um modelo colonialista com uma carapaça democrática; um sistema de quase-liberdades e vontade popular que sucumbe às tentações do grand diable d’argent,patron de la finance; uma “mídia corregedora” que se paga para lembrar e esquecer.

Enfim, os negros sucumbem à própria ignorância e à chibata da “ekipeconômica”. Trabalham duro sol-a-sol por uma miséria que, não comprando nem o próprio sustento, vê de longe a liberdade e a sombra que protege do calor. Só resta clamar aos céus “miserere, Domine, miserere”. E misericodiosissimamente os céus mandam a Bolsa Família. Mas, se dá com uma mão, tira com a outra. A derrama é tão virulenta que nos dias de hoje arromba até a senzala, mais violentamente até que na cidade. O Sistema Tributário é o emaranhado que não deixa entender as receitas do Erário. Mas a foice é clara: corta as mãos de quem produz e o pescoço de quem compra, aviltando o interesse. E o Leão tem fome! Fome para pagar os juros mais altos do sistema, redistribuindo a renda aos filhos dos senhores de engenho. Santo, Santo, Santo! Santo é o nosso Senhor, Superávit Primário!

E nem o benévolo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço escapou da mão que tira; virou cooperativa de crédito. O Senhor paga ao o Fundo o valor devido e pode tomar empréstimo subsidiado do BNDES, enquanto o dinheiro do negro e do liberto é remunerado a taxas que mal cobrem a inflação. Empréstimo subsidiado pelo próprio escravo; coisa que só há onde a chibata sibila pelos ares, e pá desce ao solo na formação de um país que se constrói de cima para baixo; primeiro como instituição e depois como a democrática e pacífica nação multiétnica. E que não nos venha o Leão dizer que o escravo é beneficiado pelo sistema que só faz perpetuar a laceração de seus meios de trabalho!

O Brasil é a terra – pra evitar dizer país – da vida fácil. Onde o calor dá preguiça e é doce ganhar a vida naovernight. É a terra onde o trabalho é um pecado e onde é um pecado não ver a vida passar doucement. É a terra em que produzir com as próprias mãos é um pecado venal – só permitido aos bugres desalmados, e em que transferir o trabalho para o negro, apropriando-se do lucro, é o natural.

É que o calor deu preguiça no português, não no africano acostumado a ele.

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