segunda-feira, 24 de agosto de 2009

AVE MARIA VON SCHUBBERT

Carrego um medo quase irreconciliável com os aviões. Definitivamente, sinto-me fora do meu hábitat natural: a terra. Voar é totalmente antinatural para mim a quem não foi dado nenhuma asa. A tensão começa em geral no dia anterior. Um pensamento insistente sobre a morte me invade de tal maneira que não consigo fazer como habitualmente faço, congelando as imagens em minha mente e estilhaçando-as. O nervosismo em geral me leva à internet à busca dos mais recentes acidentes e dos motivos que os causaram, pois talvez assim eu possa evitá-los no dia seguinte. Quando entro na aeronave, procuro desde pequenos arranhados na fuselagem a funcionários que estão lá embaixo fazendo nada. Nem a forma indigna como jogam as malas no compartimento de bagagens ou os jornais do dia me distraem; um horror só. Os motivos para tanto pânico? Não sei. Só que me aterroriza ver as nuvens de cima de dentro daquele cilindro que sem turbinas não iria muito longe. As aves na decolagem então? Assustam-me mais que tudo atualmente!


Às vezes o medo é totalmente controlável. Normalmente carrego todo meu aparato de entretenimento para o avião numa bolsa cujo tamanho é muito oportuno: livros, laptop, iPod, balas, chocolates, óculos escuros e mesmo cigarros, caso um dia sejam necessários. E sempre como o peru que será degolado, tomo algum drink na sala de embarque e cerveja no avião; tudo para ver se aplaco meu pavor. Naquele dia eu estava ligeiramente mais vulnerável, a despeito de que tivéssemos um dia lindo: muito sol e raríssimas nuvens! Mas entraria no avião sozinho, sem o amigo com quem geralmente viajo. Esse foi num voo um pouco antes de mim. Quando entrei na sala de embarque, o medo tornou-se já incontrolável. E, nem que eu estivesse sendo segurado de tão bêbado ou dopado de calmantes, o medo daqueles tubarões voadores brancos me deixaria.


Faço aqui uma pausa para falar sobre as outras pessoas, pois elas não têm medo. E estes são meus momentos de distração: as decolagens, as turbulências e os pousos. São as horas em que exalam as melhores e piores fragrâncias e em que se faz o maior silêncio. Antes desses momentos, não tenho sequer um segundo de paz para prestar atenção no que estou lendo, tamanha é a algazarra. Mas, quando sentem aquele aperto nas vísceras ou aquele balançar que quer fazer-nos levitar, todos se calam. E parecem gambás. Sinto os mais diversos perfumes, com as mais diversas notas de coração gritando pelo calor que sentem nas peles de seus donos. Uma montanha russa de adrenalina. Silêncio total. E me distraio vendo que a algazarra se faz porque não estão sozinhas como eu com meu medo.


Dito isso, voltemos ao meu caso. Tudo normal na decolagem e um dia lindo lá em cima. Neste ponto, eu já mudara do livro para o iPod, em que ouvia minha querida Bossa Nova: O Barquinho, A Rita, O Lamento do Morro, Saudade fez um Samba, enfim. Mas, após o serviço, um fato pequeno e especial me chamou a atenção: onde estariam o piloto e copiloto que nada falaram sobre a temperatura lá fora, a altitude e o tempo em São Paulo? Estariam lidando com algum problema ou alguma turbulência à frente? Um medo tremendo me invadiu novamente e me raptou de minhas distrações; teríamos problemas e eu era o único dentre aquelas plácidas pessoas capaz de prevê-lo. O medo da morte estava ali, onde não poderia estar. E tudo que conseguia pensar é que aquela ainda não era a hora de morrer. Éramos todos tão jovens; ainda teríamos tanta vida a gozar. A montanha russa de adrenalina se ativou em mim sem que sequer houvera uma balançadinha do avião. E era um horror! Iria morrer e nem tempo haveria de expiar os pecados. Não deu outra: tirei da Bossa Nova e rapidamente procurei o que havia de mais precioso dentre minhas músicas para aquele momento: a Ave Maria von Schubert, cantada por Maria Callas. E que coloratura divina! Levar-me-ia aos céus, aos pés do Todo-Poderoso para que pedisse perdão pelo que não tivera tempo de consertar em vida. E na mesma medida em que Callas empostava sua voz, as lágrimas corriam pelo meu rosto suplicante.


Olhei então para os lados, na intenção de ver se alguém me reparava piangendo lacrime di paura. E vi então umas sandálias Dolce & Gabbana lindas! Altíssimas e cheias de detalhes com florezinhas amarelas e tiras que me lembravam jeans. A dona das sandálias não as deixava para trás: poderosíssima, de pernas cruzadas – e como alguém ainda consegue cruzar as pernas em nossas latas de sardinha voadoras? – lendo jurisprudências sobre algum caso qualquer. Era uma advogada, voando a trabalho, e que certamente, baseando-me somente naquelas sandálias, ganharia o caso que fosse. Foi então que me deparei com a realidade: eu ainda não havia me formado em Direito e não poderia comprar mais que os óculos que usava. O assunto me tomou por completo.


Quando descemos em São Paulo e reencontrei meu amigo, o dia continuava lindo, e seria regado de chopp e bolinhos de bacalhau - que amo - do Mercado Municipal. Mas a voz de Callas, eu a esqueceria jamais!

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